sábado, 11 de fevereiro de 2023

Babeco das Umburanas: Poetas indígenas Xukuru de Caramucuqui (primeira parte)

                                                                                                        Lindoaldo Campos

Mestre em História dos Sertões (UFRN)

Membro do CPDOC-Pajeú

  

“Babeco”: é assim que alguns referem-se às pessoas nascidas no Município de Itapetim/PE com o sentido pejorativo de primitivos, atoleimados, por vezes reforçado com o acréscimo do qualificativo “das Umburanas” (também escrito e falado Imburanas) em alusão à originária denominação desse lugar.

Todavia, embora conste dos dicionários com esse sentido (talvez por causa da aproximação fonética com “babaca”), o termo babeco originariamente se refere a um povo indígena, mais especificamente a uma vertente do povo indígena Xukuru, que vivia no Alto Sertão do Pajeú à época da colonização dessas terras.

É o que consta do requerimento de sesmaria (grande porção de terras) apresentado em 1695 por Custódio Alves Martins:

 

Diz o Alferes Custódio Alves Martins, morador no sertão do Pajaú [que] descobriu terras chamadas Aimbó [...] que em algum tempo foi aldeia de tapuias bravos, chamados Xocurús que ao presente estão de paz, místicas com os tapuias do Araróba mais de cem léguas desta praça.[i]

 

Isso mesmo: trata-se do atual povoado Ambó, localizado entre São José do Egito e Brejinho e de pessoas do povo Xukuru que atualmente vive no Território Indígena da Serra de Ororubá, em Pesqueira/PE.

Provavelmente eles vieram seguindo o chamado Caminho do Capibaribe:

 

Fonte: José Antônio Gonsalves de Mello, Três roteiros de penetração no território pernambucano (1738 e 1802)


 Nesse mapa observe os lugares Sucuru, São Paulo e São Pedro. O primeiro é o atual Distrito Sucuru (Município de Serra Branca/PB porém mais próximo à cidade de Sumé/PB), que até aproximadamente 1700 era o centro dos domínios dos Xukuru, amplo território que abrangia os atuais municípios de Iguaraci, Buíque, Sertânia, Belo Jardim, Caruaru, Jataúba (em Pernambuco), Prata, Monteiro, São Sebastião do Umbuzeiro, São João do Tigre, Sumé e Serra Branca (na Paraíba).

Já os lugares São Paulo e São Pedro são fazendas fundadas por Custódio Alves Martins, a primeira localizada na divisa entre os municípios de Prata/PB e Tuparetama/PE e a segunda localizada no Município de São José do Egito/PE, a primeira quando se entrava no Alto Sertão do Pajeú e há muito propriedade da família Dantas de nosso amigo Romerinho.

Acontece que alguns Xukuru permaneceram na Fazenda São Pedro, como é possível concluir a partir do batismo de Manuel, filho de José Soares e Cecília de Torres, índios do Orubá, batizado em 1777 na “Capela de São Pedro do Pajaú”:

Manel Indio

         

        Manuel natural desta freguesia filho legítimo de José Soares e Custódia de Torres digo Cecília de Torres Índios do Urubá nasceu a dois de Outubro do ano mil setecentos setenta e sete, e a nove de Março foi solenemente Batizado com santos Óleos de licença minha pelo Padre Francisco Xavier Ordonho de Sopeda na Capela de São Pedro do Pajaú, foram padrinhos Manuel Pereira filho de Francisco Pereira e Agostinha Soares filha de José Coelho de que fiz o assento.

Cypriano Joze da Camara Gondim

Cura e Vigro no Krery

 

Já em 1839, na capela de São José das Queimadas foi realizado o batismo de Trajano, indígena filho de moradores do Ambó:



Traja-

no

Índio

 
 

Trajano, índio, filho legitimo de Marcos Soares de Araújo e Thereza Maria naturais moradores no Ambó desta Freguesia de São José da Ingazeira, nasceu aos vinte cinco dias do mês de janeiro do ano de mil oito centos trinta nove e foi batizado solenemente de minha licença com os Santos Óleos na Capela de São José das Queimadas pelo Reverendo Manoel Joaquim de Souza Camarão aos cinco dias do mês de fevereiro do ano supra foram padrinhos Estevão Gregório Nunes, solteiro e Joaquina Maria, solteira, moradores nesta mesma Freguesia do que para constar fiz este assento e assinei.

O Vigrio Plácido Antio dos (?)[i]

 Voltemos aos “babeco”, a cujo respeito o historiador teixeirense Pedro Baptista assinala:

 

Os emburanenses são no Teixeira tratados por Babecos, pejorativo equivalente a tabaréu e que se origina do nome de uma família íncola dali, cujo tronco menos remoto era a Babeca, proprietária de CARAMUCUQUI, local de antigo aldeamento a oeste do atual povoado.[ii]

 A partir desses indícios, as referências histórica e geograficamente mais próximas que encontrei para os termos “babeco” e Caramucuqui foram Maria José de Medeiros (Santa Luzia/PB, 1748 – 1842), “mais conhecida como Babanca”[iii], e sua bisavó, a indígena Caramucuim-Caramucá.

No processo de invasão dos sertões do Nordeste brasileiro, nos sécs. XVIII e XIX seus familiares e posses irradiaram-se para Teixeira (onde possivelmente seu pseudônimo foi registrado como Babeca) através de vínculos familiares com a família Dantas, a exemplo de Ana de Amorim Valcácer (tia materna de Maria José de Medeiros), que casou com Geraldo Ferreira das Neves Sobrinho e “a descendência do casal irradiou-se para o Teixeira”[iv].

Maria José de Medeiros, a Babeca, era bisneta da indígena Caramucuim-Caramucá (poss. Santa Luzia/PB, aprox, 1680) (batizada Custódia de Amorim Valcácer pelo português Pedro Ferreira Neves, conhecido como Pedro Velho[v]) e possivelmente usou seu nome originário para denominar a propriedade que ficou conhecida como Caramucuqui, localizada a cerca de 5 km do centro da cidade de Itapetim/PE.

Por sua vez, o historiador Olavo de Medeiros Filho levanta a possibilidade de que Caramucuim-Caramucá pertencia à etnia indígena Tarairiú[vi], da qual faz parte o povo Xukuru[vii], o que torna possível conceber que

 ü Os Babeco são indígenas Xukuru sobreviventes da Guerra dos Bárbaros que resistiram na região de Itapetim/PE

 Tem mais: no contato havido com os invasores do Alto Sertão do Pajeú, é possível que os Babeco-Xukuru tenham se integrado às fazendas como vaqueiros e agregados e adotado a poesia como estratégia de resistência.

Essa possibilidade ganha peso quando  estudiosos consideram que o precursor dos cantadores do Alto Sertão do Pajeú é descendente Xukuru. 

Tema para nossa próxima peleja.



[i] Afogados da Ingazeira – Batismos 1836 a 1841, fls. 92 – Disponível em CPDoc-Pajeú – Livros de Igrejas e Cartórios.

[ii] Pedro Baptista, Atenas de cantadores, p. 33. Em seu livro Cônego Bernardo (p. 12-13) esse historiador refere-se à presença Xukuru em Teixeira, inclusive com a narrativa de que teriam raptado duas moças filhas do Coronel Rego Barros, que respectivamente deram nome ao Riacho das Moças, à Serra das Moças e ao lugar conhecido como Coronel. Cfr. tb. Antônio Xavier de Farias, Teixeira, p. 68; Irineu Joffily, Notas de viagem da Villa de São João do Cariry e do Monteiro, p. 233-234; Linda Lewin, Who was “o grande Romano”? Genealogical purity, the indian “past,” and whiteness in brazil’s northeast backlands (1750-1900), passim.

[iii] rajano Pires da Nóbrega, A família Nóbrega, p. 22.

[iv] Olavo de Medeiros Filho, Velhas famílias do Seridó, p. 19.

[v] Conferir Lydia Brasileira, Raízi gatingêra de Ontôim e Terezinha Francisco Reis, p. 3. Caramucuim possivelmente provém de “mucuim”, a cujo respeito Eduardo Navarro esclarece: “muku’iîy (s.) – MUCUIM, variedade de inseto vermelho do mato, acarídeo da família dos trombidídeos, que entre no corpo humano e causa grande comichão” (Dicionário de Tupi Antigo, p. 318).

[vi] Olavo de Medeiros Filho, Joaquim Estanislau de Medeiros (Major Quincas Berto do Fechado), p. 4 e 34.

[vii] Conferir Estevão Pinto, Etnologia brasileira, p. 47; Olavo de Medeiros Filho, Os Tarairiús, extintos tapuias do Nordeste, p. 244; Muirakytan Macedo, A penúltima versão do Seridó, p. 35; Helder Macedo de Medeiros, Ocidentalização, territórios e populações indígenas no sertão da Capitania do Rio Grande, p. 104; Pedro Puntoni, A Guerra dos Bárbaros, p. 86 e nr 111; José Elias Borges, Índios paraibanos: uma classificação preliminar, p. 29.

 



[i] Documentação histórica pernambucanaSesmarias, vol. I, p. 39-40 e SILB PE 0017.

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