Lindoaldo
Campos
Mestre
em História dos Sertões (UFRN)
Membro
do CPDOC-Pajeú
O primeiro poeta do
Alto Sertão do Pajeú de que se tem notícia é Bernardo Nogueira de Carvalho, nascido
em 1814 (registrado em Flores/PE, à época sede da Comarca do Sertão[i]) no
Sítio Mulungu (próximo ao povoado Olho D’Água, entre São José do Egito/PE e Itapetim/PE)
e que foi residir na vizinha cidade de Teixeira/PB atraído pela fraterna amizade a
Nicandro Nunes da Costa[ii] (filho
de Agostino Nunes da Costa Júnior (Santa Luzia/PB, 1797 – Teixeira, 1849[iii]), o
primeiro poeta conhecido no Nordeste e pai dos também poetas Nicodemos Nunes da
Costa e Hugolino Nunes da Costa).
Bernardo Nogueira
era glosador, ou seja, poeta que improvisa sem o acompanhamento de instrumento
– diferentemente do violeiro, que, à evidência, usa uma viola para improvisar seus
versos, caso de Antônio Marinho do Nascimento (São José do Egito[iv], 1887 –
1940), que, como tive o cuidado de assinalar no final do texto anterior, é o
precursor dos cantadores do Alto
Sertão do Pajeú.
Isso porque na
vizinhança de Marinho moravam os três irmãos Bernardino de Oliveira: Joaquim,
José e Amaro, filhos de Manoel Bernardino de Senna, mestre-escola (em termos
atuais correspondente a professor do Ensino Fundamental) que, “com estágio
acima do primário [...] costumava preparar culturalmente seus filhos” e eles se
tornaram grandes repentistas. Porém, “todos tinham a cantoria como atividade
suplementar [enquanto Marinho] foi o primeiro a cantar profissionalmente”[v] – aliás,
labuta que só foi reconhecida como atividade trabalhista através da Lei 12.198/2010,
sancionada pelo Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva.
Isso foi em 1911
(portanto, quando já tinha 23 anos de idade!), como consta de trova afixada (mas
depois retirada!) no busto erigido em sua homenagem por iniciativa de seu conterrâneo
o poeta, jornalista e pesquisador Rogaciano Leite e inaugurado em 6 de janeiro
de 1950, em meio à tradicional Festa de Reis[vi]:
Em
novecentos e onze
Tremulou
meu estandarte
Quando
este peito de bronze
Deu
início a esta arte
Nessa ocasião Marinho
enfrentou Manoel Clementino Leite (Sumé/PB, aprox. 1887), que tinha a mesma
idade mas já era experimentado como “aluno” de Romano do Teixeira (1835 – 1891)[vii] e por
sua vez atuava na região como “professor” de cantoria, pois “o
velho Manoel Clementino Leite [era] nascido em Sumé, mas de família de Itapetim
e São José [do Egito]”[viii].
Outro “aluno” de
Mestre Manoel Clementino que se destacaria foi Severino Lourenço da Silva Pinto
(Pinto do Monteiro) (Monteiro/PB, 1895 – 1990) e, após a conclusão do “fundamental”,
o destino de Marinho e Pinto foi o mesmo: Recife/PE, onde Pinto “adquiriu
renome e ficou temido por todos os cantadores”[ix] e
Marinho passou pelo “batismo de fogo” com José Galdino da Silva Duda (Zé Duda do Zumbi) (Itabaiana/PB,
1866 – Recife/PE, 1931), a quem “quase todos os cantadores contemporâneos
chamam de Mestre dos Cantadores”[x].
O que isso tem a
ver com os “babecos” das Umburanas? Ora, essa “questão” foi levantada em uma
das mais afamadas cantorias de que se tem notícia, entre Marinho e Pinto no
Mercado Público do então povoado de Prata/PB (atual Município de Prata/PB), há
quase 100 anos, precisamente em 1º de maio de 1926.
Foi quando, ampliando
em lonjura e fundura a troca de “gentilezas”, Marinho passou da sextilha ao
estilo (não à toa) conhecido como martelo e “pregou” a “família” de Pinto:
Do
pinto eu acabo a raça
Mato
a galinha de gôgo
Boto
gás e boto fogo
Ela se vai na fumaça
O
gato-mourisco passa
Frangos
e frangas carrega
O
gavião desaprega
Sem
saciar seu instinto
Matando
o que é de pinto
O
galo a raposa pega
Sem sair da
temática, em sua resposta Pinto “apura a qualidade” de Marinho através de
alusões a uma das proveniências familiares de seu adversário:
Já
que me deste o motivo
Preciso
avisar a tu
Se
eu for ao Pajeú
Não
deixo um babeco vivo
Eu
sou um vulcão ativo
Com
a sua lava ardente
Vou
queimando tua gente
A
tudo dou descaminho
Quem
pertencer a Marinho
Não
fica um pra semente
No quarto verso dessa
décima Pinto alude aos “babeco”, denominação com que, como disse na primeira
parte desse texto, alguns referem-se às pessoas nascidas no Município de
Itapetim/PE com o sentido pejorativo de primitivo, atoleimado, e Pinto assim o
usa para se referir à família de Marinho, como Rogaciano Leite registra ao
comentar esse verso:
Babeco:
apelido pejorativo da família de que descendia Marinho.[i]
Ora, Rogaciano só
fez essa afirmação porque conhecia muito bem Marinho, pois foi após assistir a
uma cantoria desse poeta que em 1934 fugiu de casa para acompanhá-lo por pelo menos
5 anos[ii].
Alem disso, adiante
e decerto sem conhecer essa afirmação de Rogaciano (dentre razões porque
publicada em revista paulistana cuja circulação certamente não alcançava os
sertões do Nordeste brasileiro), outro poeta e pesquisador que também apontou
essa proveniência familiar de Marinho foi José Marcolino Alves (Zé
Marcolino) (Sumé/PB, 1930 – Carnaíba/PE, 1987):
[Antônio
Marinho] descendia dos Babecos das Umburanas, hoje Itapetim, e da família
Bernardo, de Ouro Velho.[iii]
Não bastasse, Ivo
Mascena Veras, biógrafo de Marinho, transcreveu essa afirmação de Zé Marcolino no
capítulo sintomaticamente intitulado Os
babicos de seu livro Antônio Marinho:
precursor doa repentistas de São José do Egito e imediatamente a seguir
arrematou:
Babeco,
do Babicos, índios desgarrados da tribo dos Xucurus de Teixeira.[iv]
Não se dando por
satisfeito, noutro parte Ivo Mascena Veras reitera que “Marinho era de família
dali [de Umburanas] (os babecos) [...] Antônio Marinho, rebento dos Babecos ou
Babicos das Umburanas” e arremata:
Pelo
que vemos, Marinho está mais para índio do que para português. Em sua caminhada
por estradas e dias difíceis de sua vida, nunca se deixou escravizar. Eu creio
que igualmente o indômito Pajeú tenha herdado do índio esse apreço acima do
comum aos postulados de Liberdade. Essa maneira de ser pobre, porém livre e
soberano. Essa inteligência perscrutadora que vive sempre a abrir novos
caminhos e nunca se perder nos já existentes [...]
Os
Babecos, Babicos, “índios das umburanas, terra dos lagos de pedra”, a que
chamávamos tanques.[v]
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Antonio Marinho do Nascimento
Fonte: Blog Mala de romances
Disponível em: http://maladeromances.blogspot.com/2017/01/do-grande-poeta-antonio-marinho.html
|
Mas isso não é
tudo: ao comentar o referido verso de Pinto, o pesquisador Raimundo Araújo
assinala (aliás, em conformidade com as narrativas locais sobre as
características físicas dos “babeco”):
Babeco, uma índia dos pés enormes, de
Umburanas, e da qual, segundo a lenda, descendia a família de Antônio Marinho.16
Possivelmente se
trata de Maria José de Medeiros, a Babeca, bisneta da indígena Caramucuim-Caramucá, de quem
proveram as denominações “babeco” e Caramucuqui, lugar localizado a cerca de 5 km do
centro da cidade de Itapetim.
Ora, a partir
desses indícios e considerando (como fizemos na primeira parte desse texto) que
os Babeco são indígenas Xukuru que resistiram na região de Itapetim/PE,
integraram-se às fazendas como vaqueiros (caboclos mansos) e agregados (caboclos
brabos) e adotaram a poesia como estratégia de resistência, é possível conceber
que
Antônio Marinho do Nascimento, o
precursor dos repentistas do Alto Sertão do Pajeú, possivelmente era
descendente dos indígenas Xukuru
Aliás, é o que a
pesquisadora Linda Lewin descobriu a respeito do cantador Romano do Teixeira, o
precursor da Escola de Poesia de Teixeira17, cuja mãe, Joaquina
Maria do Espírito Santo, possuía “ancestralidade mista, Xukuru e africana”18.
E é o que o pesquisador Luís Wilson assinala quanto ao cantador João Isidro
Ferreira, que “pertenceu à família ‘Babeco’ da vilazinha [Umburanas] em que
nasceu naquela época, em São José do Egito”19.
Desconheço se essa
foi a intenção com que Ivanildo Vilanova fez esse verso em uma cantoria
realizada em 1977 justamente em São José do Egito:
Mas de uma coisa
sei: são indícios fortes do fato de que os
indígenas Xukuru não apenas estiveram mas sobretudo estão aqui, inclusive como proeminentes compositores desse modo de
vida que chamamos Sertão do Pajeú.
Cancão, “velho
Pajé”21, e Zé Adalberto, Babeco do Juá das Umburanas, não me deixam
mentir.
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1 Conferir Alvará Régio de 15/01/1810.
2 Conferir Pedro
Baptista, Atenas de cantadores, p.
22.
3 Conferir seu Assento de
Óbito no arquivo Teixeira – Livro de Óbitos – Livro nº 1 – fls. 50v e 51
(disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:33SQ-GP92-ZBP?from=lynx1UIV8&treeref=LZJ4-2YC&i=52&wc=9VR5-7MC%3A370142101%2C370142102%2C370803101&cc=2177286.
4 À época em que Marinho nasceu, o atual Município de São José
do Egito era a Vila de São José da Ingazeira (por ter sido composta por
fazendeiros provindos do atual Município de Ingazeira/PE, que possui o mesmo
santo protetor). Todavia, esse poeta é egipciense porque no período da
Monarquia a elevação de um Povoado à condição de Vila lhe garantia autonomia
administrativa (equivalente à que o Município terá no período da República), o
que no caso ocorreu através da Lei Provincial 1260, de 25 de maio de 1877, que
elevou o Povoado de São José da Ingazeira à condição de Vila desmembrada da
Vila de Ingazeira/PE – data, aliás, que
deve ser corretamente considerada como seu marco emancipatório – a exemplo do
que ocorre com o Município de Teixeira, cujo marco emancipatório é 29 de agosto
de 1859, data em que o Povoado foi elevado à categoria de Vila desmembrada da
então Vila de Patos/PB.
5 Ivo Mascena Veras, Antônio Marinho, p. 33 e 91.
6 Conferir
Diário de Pernambuco de 18 de janeiro de 1950 – cfr. tb. Diário de Pernambuco
de 21 de agosto de 1946 (sobre o início do projeto de confecção do busto).
7 Conferir Átila
Almeida e José Alves Sobrinho, Dicionário...,
p. 155, 177 e 210. Cfr. tb. Francisco das Chagas Batista, Cantadores e poetas populares, p. 58.
8 Ivo Mascena Veras, Antônio
Marinho..., p. 30, 33 e 91.
9 Rogaciano Leite, O
cantador Antônio Marinho, p. 82.
10 Francisco
das Chagas Batista, Cantadores e poetas
populares, p. 173. Marinho recorda esse rito de passagem no cordel Encontro
de Antônio Marinho com José Duda no Recife
em 1915 - Disponível em http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Literatura%20de%20Cordel%20-%20C0001%20a%20C7176&pesq=marinho%20duda.
11 Rogaciano
Leite, O cantador Antônio Marinho, p.
87, nr 5.
12 Rogaciano
Leite, O cantador Antônio Marinho, p.
81 e 77.
13 Zé
Marcolino, Cantadores, prosas sertanejas
e outras conversas, p. 69 – grifei. Zé Marcolino compôs diversas músicas
gravadas por Luiz Gonzaga, como Numa sala
de reboco, Cacimba nova, Cantiga de
vem-vem, Pássaro carão, Saudade imprudente e Serrote agudo.
14 Ivo
Mascena Veras, Antônio Marinho..., p.
116. O historiador itapetinense Marcos Nunes Costa assinala que
“nas Umburanas habitavam nessas terras os índios Babicos” (Itapetim: cidade das pedras soltas, p. 39).
15 Ivo
Mascena Veras, Antônio Marinho..., p.
99, 119 e 124-125.
16 Raimundo Araújo, Cantador, verso e viola, p. 38, nr 2.
17 Conferir Linda Lewin, Who was “O grande Romano”? Genealogical purity,
the indian “past”, and whiteness in Brazil’s northeast backlands (1750-1900). CLIO, n. 25-1, 2007, p. 83-143.
18 Linda
Lewin, Who..., p. 99.
19 Luís
Wilson, Roteiro de velhos cantadores e
poetas populares do sertão, p. 205.
20 Ivanildo
Vilanova, estrofe transcrita de Ivanildo
Vila Nova e Diniz Vitorino – São José do Egito – 1979 | Série “Cantorias Raras”
– Canal Balcão de Bodega / Gilberto Lopes – Disponível no em: https://www.youtube.com/watch?v=uNxdIWKmvgg (a partir do momento 37:37).
21 Conferir Lydia Brasileira, Cancão, velho pajé: a cura
pela poesia (Posfácio), em: SOUZA, Karlla Christine Araújo; CAMPOS, Lindoaldo;
ZUBEN, Marcos de Camargo von (Orgs.). Cancão: a lua, o sol dos mendigos –
Estudos críticos sobre o pássaro-poeta do Pajeú. Mossoró: Ed. UERN, 2013. p.
176-182.