Hesdras Souto é Sociólogo, Pesquisador e Membro-Fundador do CPDoc-Pajeú
BREVE INTRODUÇÃO:
A ideia que originou o presente artigo surgiu após uma visita que fiz ao Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano (APEJE) na cidade do Recife (PE) representando o Centro de Pesquisa e Documentação do Pajeú (CPDoc-Pajeú). Enquanto folheava os antigos livros da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco (SSP-PE), deparei-me com vários crimes ocorrido no sertão do pajeú, nosso foco de estudo, e resolvi então, fotografar o livro para ulterior análise. No livro fotografado foi possível encontrar os mais variados tipos de crime, obviamente tipificados pelo Código Penal de 1890, uma vez que as datas-limites eram 1918 a 1924 .
É importante ressaltar, caro leitor, que muitos dispositivos do Código Penal de 1890 eram frutos do ethos de uma dada época histórica, dos hábitos e costumes que permeavam a sociedade brasileira do final do século XIX. Foi nesse contexto que ele foi pensado e escrito. Levando isso em consideração é possível compreender, normativamente, que o que já foi considerado crime[1], pode, com o passar do tempo, não ser mais assim considerado.
Como irei abordar um crime que foi praticado sob a égide do Código Criminal de 1890, é preciso fazer uma pequena digressão para tecer comentários a partir do contexto histórico em que ele foi publicado.
CAPÍTULO 1: Uma Pincelada sobre o Código Criminal de 1890.
Em 15 de novembro de 1889 foi proclamada da República do Brasil, como resultado de uma união entre civis e militares que estavam bastante insatisfeitos com a monarquia. Pelo lado dos militares a insatisfação dava-se por conta da carreira e dos baixos salários, além da vedação de se manifestarem politicamente, algo que a monarquia não permitia de forma alguma.
Por parte dos civis, o descontentamento concentrava-se entre as elites econômicas e industriais que estavam surgindo e eram timidamente representadas na política nacional, além de outros setores da sociedade que desejavam maior participação no processo eleitoral.
Durante a luta pelo fim da monarquia, o movimento republicano ganhou apoio do movimento abolicionista e assim surgiu a união de grupos diversos que empreenderam um golpe que derrubou e expulsou a monarquia e expulsando a família real do Brasil.
Menos de um ano após o golpe que implantou a República no Brasil, foi editado, em 11 de outubro de 1890, o Código Criminal da República ou Código Criminal dos Estados Unidos do Brasil, que logo foi alvo de inúmeras críticas pelas falhas que apresentou devido às pressas e a ausência de discussões com que havia sido elaborado. O mais curioso disso tudo é que o Código Criminal precedeu a elaboração da Constituição da República, promulgada somente em 1891.
Vale a pena salientar que o Decreto nº 774 de 20 de setembro de 1890 antecedeu a edição do Código Criminal, abolindo a pena de galés[2], estabelecendo o limite máximo de 30 anos para as penas, determinando que a prisão preventiva deveria ser computada na execução e estabelecendo a prescrição das penas.
Apesar das críticas por ter sido mal sistematizado, o Código Criminal da República constituiu um avanço em matéria de legislação penal, se comparando ao seu antecessor.
O Código Republicano de 1890 contemplou as seguintes sanções criminais:
I. Prisão;
II. Banimento (o banimento que a Constituição de 1891 punia era o banimento judicial que consistia em pena perpétua);
III. Interdição (suspensão dos direitos políticos, etc);
IV. Suspensão e perda de emprego público e multa.
CAPÍTULO 2: Algumas Informações sobre a Inimputabilidade Penal no Código Criminal de 1890
Da mesma forma que o Código Penal do Império (1830)[3], o Código Penal da República (1890)[4] adotou o mesmo tratamento para os “loucos”: A exclusão do ilícito penal, "colocando a saúde mental como pressuposto para a configuração de crime”, assim observou o professor Maximiliano Fuhrer[5].
O Art. 27 dizia do referido código trazia[6]:
Não são criminosos:
§ 1º Os menores de 9 annos completos;
§ 2º Os maiores de 9 e menores de 14, que obrarem sem discernimento;
§ 3º Os que por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação;
§ 4º Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de intelligencia no acto de commetter o crime;
§ 5º Os que forem impellidos a commetter o crime por violencia physica irresistivel, ou ameaças acompanhadas de perigo actual;
§ 6º Os que commetterem o crime casualmente, no exercicio ou pratica de qualquer acto licito, feito com attenção ordinaria;
§ 7º Os surdos-mudos de nascimento, que não tiverem recebido educação nem instrucção, salvo provando-se que obraram com discernimento.
Sistematizando: O Código de 1890 trazia a possibilidade de internação dos incapazes por doença mental em hospitais de alienados, como era chamados à época, ou podia ser entregue às suas famílias. Entretanto, a decisão do magistrado para qualquer situação dessas, precisaria estar acompanhada de uma fundamentação, todavia, no caso da internação em hospitais somente era aplicável se o indivíduo apresentasse perigo à segurança e a ordem pública, como deixava explícito no artigo 29.
Art. 29. Os individuos isentos de culpabilidade em resultado de affecção mental serão entregues a suas familias, ou recolhidos a hospitaes de alineados, si o seu estado mental assim exigir para segurança do publico.
A nomenclatura “louco”, como havia no Art. 9 do Código Criminal do Império (1930) foi substituído por “imbecilidade nativa e enfraquecimento senil”, esse último possivelmente em razão da redução das faculdades intelectuais fruto da velhice. Outro termo inserido no Código de 1890, mas que não havia no Código de 1830 é o “surdo-mudo”. Esses, para serem considerados inimputáveis, era fundamental não terem recebido educação ou instrução, e ainda não possuírem discernimento sobre seus atos, só assim estariam livres da punição. O Código Criminal da República (1890) vigorou até 1940, quando o novo código penal foi promulgado.
Capítulo 3: Um caso de familicídio, a mãe que assassinou o filho em São José do Egito (PE) em 1919.
No ano de 1919, no povoado chamado Grossos, zona rural de São José do Egito, sertão de Pernambuco, a senhora Theresa Guedes David assassinou o seu filho, de nome Amaro, de 8 anos de idade, a cacetadas. Segundo consta registrado no livro e ocorrências policiais da época (anexo 1 - pág 33), o oficial que registrou o crime chamou a assassina de ‘alienada’, e que após cometer o crime acabou sendo recolhida a delegacia local.
No referido livro, na página (anexo 2 - pág 51), a mãe foi chamada de ‘louca’, e que já havia sido indiciada pelo crime de homicídio. Nesse contexto, cabe algumas poucas observações jurídicas. Se, de fato, ela fosse ‘louca’ e ‘alienada’, como consta nos documentos oficiais da Delegacia de São José do Egito (PE), ter-se-ia um caso de exclusão do ilícito penal, não cabendo assim a pena de prisão. Infelizmente não foi possível encontrar o processo criminal desse ocorrido no Memorial da Justiça de Pernambuco[7], localizado na cidade do Recife, portanto, não é possível afirmar se a acusada foi denunciada nem condenada.
Como minha análise jurídica é
bastante limitada, pois ainda sou um estudante das Ciências Jurídicas, anexei abaixo
a fotografia acompanhada da transcrição do documento oficial com dados do caso,
para que os colegas devotados às ciências criminais possam fazer suas análises.
O objetivo aqui é despertar a curiosidade sobre o caso e o contexto
histórico-jurídico em que ocorreu. Mesmo que o código penal da época em que o crime ocorreu não esteja mais vigente, sempre cabe mais informações para compreendermos melhor a evolução do direito penal brasileiro.
Os textos abaixo estão de acordo com o original.
N.33 Delegacia de Polícia de S. José do Egypto em 21 de setembro de 1919.
Exmo. Sr. Desembargador Antonio da Silva Guimarães.
D.D Chefe de Polícia do Estado.
Comunico a V.Ex.cia que hoje as 7 horas da manhã no logar Grossos deste município, a mulher de nome Thereza Guedes, que se acha soffrendo das faculdades mentaes, esborduou a cacête em seu filho de 8 annos de idade de nome Amaro, que ficou em estado gravíssimo, vindo a fallicer as 18 horas; a mesma alienada acha-se recolhida na cadeia desta cidade. E sobre o facto possigo nas diligências recomendas pela lei.
Saúde e Fraternidade.
ANEXO 2:
N.51 Delegacia de Polícia de S. José do Egypto em 8 de Novembro de 1919.
Exmo. Sr. Desembargador Antonio da Silva Guimarães.
D.D Chefe de Polícia do Estado.
Com este faço apresentar a V.Ex.cia a fim de ter o competente destino a louca Thereza Guedes David indiciada em crime de homicídio em um seu filho de nome Amaro de 8 annos de idade, facto este ocorrido no dia 21 de setembro próximo findo no logar Grossos deste município.
Saúde e Fraternidade
Luis Sabino de Azevedo
2º Tenente Delegado
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REFERÊNCIAS
http://www.koinonia.org.br/tpdigital/detalhes.asp?cod_artigo=435&cod_boletim=24&tipo=Artigo
https://jus.com.br/artigos/932/evolucao-historica-do-direito-penal/2
https://www.infoescola.com/historia-do-brasil/proclamacao-da-republica/
FUHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Tratado da Inimputabilidade no Direito Penal. São Paulo: Malheiros, 2002
[1] Usamos a concepção tripartida da Teoria do Crime, sendo o Fato Típico, Antijurídico e Culpável .
[2] A pena das galés era um tipo de sanção criminal na qual os condenados cumpriam a pena com trabalhos forçados. Esse tipo de sanção figurava no Código Criminal de 1830, precisamente no artigo 44, que determinava que os réus andassem com calcetas (argolas) nos pés e correntes de ferro, e fizessem trabalhos públicos na província onde praticaram os delitos.
[5] FUHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Tratado da Inimputabilidade no Direito Penal. São Paulo: Malheiros, 2002. Pág. 21.
[6] O texto contém a mesma grafia da época.
boa tarde, queria saber os horários de funcionamento do arquivo público de afogados da ingazeira, desculpe estar comentando aqui, mmas não achei informação sobre em nenhum lugar. obrigada.
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