quinta-feira, 20 de maio de 2021

OS ESCRAVIZADOS QUE CASARAM NA INGAZEIRA (PE): O Caso dos escravos do Coronel Chico Miguel

  Por Hesdras Souto, Sociólogo, Pesquisador e Presidente do CPDoc-Pajeú.

 

A Escravidão no Brasil: Um breve começo.

 

No século XVI, precisamente no ano de 1535, ancorava no porto de Salvador, na Bahia, o primeiro Tumbeiro (como eram conhecidos os navios que traziam cativos africanos) vindo das colônias portuguesas na África. Começava o tráfico de escravos, o período mais selvagem da nossa história. 1535 é o marco inicial da escravidão no Brasil, que só chegaria ao fim em 13 de maio de 1888 com a publicação da Lei Áurea, 353 anos depois do seu início. 

 

É sempre bom lembrar que os primeiros seres humanos a serem escravizados no Brasil foram os nossos nativos indígenas. Somente três décadas depois da invasão é que os portugueses começaram a trazer negros africanos capturados nas suas colônias na África, como Angola e Moçambique, por exemplo, para servirem de mão de obra escrava no Brasil.

 

Diagrama original do navio britânico Brookes. Fonte: https://farm6.staticflickr.com/5199/7368885460_550b83c0a8_o.jpg

    Os números, ainda que não sejam fielmente precisos, são impressionantes. Foram mais de 12 milhões e meio de seres humanos que  foram forçados a atravessar o Oceano Atlântico para serem escravizados nas Américas. Alguns historiadores acreditam que ocorreram aproximadamente 36 mil viagens de navios nesse período. Nessas viagens macabras, quase 2 milhões de africanos morreram, e os mais de 10 milhões que sobreviveram chegaram em terríveis condições de vida. (os números sobre a escravidão nas Américas podem ser encontrados aqui)

    De todos os africanos que foram capturados nas colônias portuguesas, quase 5 milhões vieram parar por aqui. "O Brasil sozinho, recebeu 4,9 milhões de cativos, o equivalente a 47% do total desembarcado em todo o continente americano entre 1500 e 1850". (GOMES, 2020. p. 255). 

    Ainda segundo Laurentino Gomes, a quantidade de escravos que chegou no Brasil foi dez vezes maior que a quantidade levada para às colônias inglesas da América do Norte. Para o autor dos livros 1808, 1822 e 1889 "o Rio de Janeiro foi o maior porto negreiro da história, de onde saíram ou chegaram navios responsáveis pelo transporte de 1,5 milhão de escravos entre meados do século XVI e 1852,  aproximadamente" (2020. p. 259)

 
A origem dos escravos que chegaram ao Brasil. Fonte: (GOMES, 2020. p. 266)

     Em Pernambuco, a maior parte dos africanos que desembarcaram aqui era de Angola ou da Costa da Mina. O governador da Capitania Pernambucana José César de Menezes, em 1778, informou à Coroa Portuguesa que 38.787 escravos vieram de Angola entre os anos 1742 e 1760, enquanto 16.626 eram provenientes da Costa da Mina. (um relatório sobre os número de cativos trazidos à Capitania de Pernambuco pode ser acessado aqui).

 
A origem dos escravos que chegaram em Pernambuco. Fonte: (GOMES, 2020. p. 267)

 

As Famílias Escravas

 

Apesar de ainda ser desconhecido para muitas pessoas, o casamento entre pessoas cativas, durante o período que imperou a escravidão, era algo comum e inclusive regulamentado pela Igreja Romana. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia era o documento eclesiástico que já normatizava, desde de junho de 1707, o casamento de pessoas escravizadas, permitindo que elas desposassem qualquer pessoa, seja livre ou cativa. Esse documento foi a base legal para todos os Bispados da época.

 

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Livro I. pág. 125.

    Outro fato interessante de ressaltar é que o proprietário não podia interferir no matrimônio do seu escravo e nem separá-lo após a consumação desse, sob pena de pecado mortal. Como sabemos, a Igreja até hoje advoga pela indissolubilidade do casamento. Entretanto, o casamento dos cativos só era possível com a anuência do seu dono.  
 
    Apesar da Igreja defender e estimular que o escravizado usufruísse da vida conjugal como qualquer pessoa livre, o matrimônio não significava a alforria. Silvia Hunold Lara afirma que em 1803 D. João VI recomendou às Juntas Administravas, por meio de um Alvará com força de lei, que "proteja quanto for possível o matrimônio de escravos, dando aos escravos e escravas casados as preferências que lhe parecem convenientes", 4 anos depois, mandou promover o casamento de escravos em várias comarcas do Brasil.  (acesse o documento aqui - págs. 375 e 436). 
 

    Se por acaso você começou a pensar que a escravidão não era tão perversa quanto dizem por aí, você está enganado. O estímulo ao casamento de escravos por parte da Igreja e de muitos senhores era pelo fato de haver vantagens nesses matrimônios. 

     Quando os escravos casavam e constituíam família ele ficava mais preso à terra e menos propenso à fuga. Um escravo com esposa e filhos dificilmente se envolveria em desavenças ou promoveria rebeliões contra seu dono. Para os senhores, isso era uma grande vantagem. 

    Quando o escravo casava ganhava um local exclusivo para fazer morada com sua família, uma pequena porção de terra para cultivo próprio e até a possibilidade de criar umas poucas cabeças de gado (ROCHA, 2004).

    Esses "benefícios", se é que pode haver algum benefício para quem vive escravizado, objetivava a diminuição do nível de revolta e insatisfação de alguém que era explorado das mais diferentes formas. E mais, a partir do momento que o escravo tinha um pequeno roçado e uma pequena criação para se dedicar apenas um dia na semana, ele era agora responsável próprio sustento, diminuindo assim os gastos do seu senhor para mantê-lo vivo.

    Historiadores como Manolo Florentino e José Roberto Góis (1995) acreditam que o casamento de escravos ajudou na tentativa de pacificação das senzalas, ainda que houvessem outros fatores de tensão. 

 

J.B Debret. Fonte: https://ihggcampinas.org/2021/03/25/o-casamento-entre-escravos/

 
       O Casamento de Escravos no Pajeú das Flores.

 

As pesquisas sobre a escravidão circunscritas à região do Pajeú são praticamente inexistentes. A Academia ainda não debruçou-se sobre os cativos africanos que vieram parar no sertão pernambucano, mas aos poucos as pesquisas vão surgindo. 

 

Alguns senhores da elite sertaneja chegaram a ter dezenas de escravos, talvez sendo comerciantes de cativos. Para ficarmos apenas com dois exemplos de pessoas que tinham muitos escravizados, e pegando os dados fornecidos pelo pesquisador do CPDoc-Pajeú Aldo Branquinho Nunes (2017), o Tenente Coronel João do Prado Ferreira (vulgo Jambinho), Delegado da Ingazeira (PE) pelos idos de 1858, talvez possuísse a maior escravaria da região do Pajeú, deixado 40 escravos no seu inventário, realizado em 1866. 

 

Sobre o inventário do Tenente Jambinho, Aldo Nunes ainda destaque que

  

A maior parte do patrimônio, 61% do total, era composto pelo “plantel” de escravos formado por 40 indivíduos, que foram avaliados por $27:800#000. Para uma época em que o tráfico negreiro já tinha sido proibido e se aproximava a abolição, numa área que não era canavieira, esse número impressiona. Numa ação de cobrança que sua sobrinha e nora, a viúva de seu filho impetrou contra os irmãos dela, os filhos de Chico Miguel, o advogado da causa, indicava o Tenente Jambinho como o possuidor da maior fortuna das cabeceiras do Pajeú. E essa fortuna, claramente, advinha da propriedade de escravos (NUNES, 2017. p. 253).


Já o seu irmão, o também Tenente Coronel da Guarda Nacional Francisco Miguel de Siqueira (vulgo Chico Miguel), Chefe Político da Ingazeira, possuía 30 escravos, como consta no inventário de sua esposa Dona Íria Nogueira de Carvalho, feito em 1879. (essas informações podem ser baixadas aqui)

 

Chico Miguel foi um desses senhores de escravos que fazia questão que seus cativos contraíssem matrimônio. Há diversos registros de matrimônios de escravos nos livros de casamento da Ingazeira, alguns desses eram justamente os cativos do Coronel Francisco Miguel de Siqueira.     

 

Um detalhe interessante encontrado na documentação eclesiástica (Batismos, Óbitos e Casamentos) do Pajeú e uma certa predominância de escravos oriundos de Angola.

 

Vamos nos ater aqui apenas aos casamentos dos escravos do Coronel Chico Miguel.

 


    "Aos 23 dias do mês de fevereiro do ano de 1843, na Fazenda Buenos Ayres desta Freguesia de São José da Ingazeira de Pajeú pelas dez horas do dia, sendo testemunhas, comigo assinaram Andre Ferreira da Costa e Leonardo dos Santos Nogueira, casados, e moradores desta freguesia, e tendo sido feitas as denunciações canônicas não existindo impedimentos servatis servandis, juntei em matrimônio, e dei as bençãos nupciais aos nubentes Domingos e Isabel, africanos, escravos de Francisco Miguel de Siqueira, casado nessa freguesia, do que para constar abri este assento. Vigário Plácido Antonio da Santa Cruz.     

 

 


"Aos onze de setembro de 1850, no Brejo de São Miguel deste Freguesia de Ingzeira, as onze horas do dia, feitas as denunciações canônicas sem impedimentos servatis servandis na minha presença e das testemunhas Felix Nogueira da Cunha e Luis José de França receberam as bençãos nupciais aos nubentes João Nação Angola e Leonor natural desta freguesia ambos escravos do Tenente Coronel Francisco Miguel de Siqueira. E para constar fiz esse assento e assino. O Vigario Felippe Benício Moura.


 

No dia 29 de julho de 1873, na Capela de São José na Ingazeira, Chico Miguel realizou quatro casamentos de seus escravos.

O referido Coronel provavelmente sabia das vantagens de se ter escravos casados, pois além das vantagens do que já falado acima, as famílias de escravos produziriam filhos que também seriam escravos, pelo menos até 1871 quando foi aprovada a Lei Rio Branco ou Lei do Ventre Livre, que, em tese, alforriava os filhos de escravos ao nascer.   

Por fim, uma coisa precisa ser dita: casados ou solteiros, a condição dos escravos era a pior e a mais deplorável possível. O casamento era apenas um alento para quem foi sequestrado de sua terra, roubado de sua família, excluído de sua cultura e de sua história. Esse nosso passado sombrio jamais deverá ser esquecido.

 

(Caso queira conhecer o caso da escrava da Ingazeira que comprou sua liberdade clique aqui)

 

  BIBLIOGRAFIA SUGERIDA

DEBRET, J.B. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia Limitada. 1978.

FLORENTINO, Manolo e Góes, José Roberto. Morfologia da infância escrava: Rio de Janeiros, XVII –XIX.In. Tráfico, Cativeiro e Liberdade (Rio de Janeiro, século XVII-XIX) organização Manolo Florentino, Rio de Janeiro: civilização brasileira, 2005.

GOMES, Laurentino, 1956 - Escravidão : do primeiro leilão de cativos em Portugal à morte de Zumbi dos Palmares, volume 1 / Laurentino Gomes. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Globo Livros, 2019. (Uma história da escravidão no Brasil ; 1).

NUNES, Aldo Manoel Branquinho. Currais, cangalhas e vapores : dinâmicas de fronteira e conformação das estruturas social e fundiária nos “Sertões da Borborema” (1780-1920) / Aldo Manoel Branquinho Nunes. –Campina Grande-PB, 2017.

REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos e CARVALHO, Marcus J. M. de, O alufá Runo: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c. 1822- c. 1853). São Paulo, Companhia das Letras, 2010. 

ROCHA, Cristiany Miranda. História das famílias escravas. Campinas, século XIX, São Paulo: editora da UNICAMP, 2004.  

SCHWARCZ, Lilia M; GOMES, Flávio dos Santos (org). Dicionário da Escravidão e Liberdade. Companhia das Letras, 2018.

SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. Trad. Laura Teixeira Mota. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995

VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Edições do Senado Vol. 79. Brasilia. Editora do Senado, 2007. 

 

Artigos

https://ihggcampinas.org/2021/03/25/o-casamento-entre-escravos/

https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-150/a-regulamentacao-juridica-do-matrimonio-de-escravos-no-brasil-seculos-xviii-e-xix-o-direito-canonico-o-direito-do-estado-e-o-silencio-da-civilistica/

http://www.scielo.br/pdf/topoi/v6n11/2237-101X-topoi-6-11-00327.pdf

http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364566505_ARQUIVO_Mapeamentodasfamiliaisnegras.pdf

https://core.ac.uk/download/pdf/71612466.pdf


 




 

 

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